domingo, 5 de março de 2017

No diagrama da AD Brasileira: heterotopias de Michel Foucault



Maria do Rosario Gregolin




A época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do simultâneo, época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso. Estamos em um momento em que o mundo se experimenta menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama. (Michel Foucault, Outros espaços, 2001, p. 414)




1.      O que é “AD Brasileira”?
            O tema proposto para discussão – O que quer, o que pode a Análise do Discurso Brasileira? – exige que seja enunciada uma questão anterior: o que entendemos por “AD Brasileira”?
            Trata-se de uma pergunta pertinente pois os significados da expressão “AD Brasileira”, hoje, são muito amplos. Se até meados dos anos 1990 esse rótulo se referia a um lugar disciplinar que delimitava um campo de pesquisas derivado da chamada “análise do discurso de linha francesa”, cuja referência principal é a obra de Michel Pêcheux, a partir de então houve uma progressiva mudança nesse estatuto, pressionada por alguns movimentos próprios ao desenvolvimento dos saberes na História:

a) Mudanças epistemológicas no campo da Lingüística levaram-na a tomar outros objetos, além do escopo da frase, e a estender-se aos níveis do “texto” e do “discurso”. Toma-se “discurso”, hoje, por exemplo, em pesquisas da Lingüística Textual, da Lingüística Funcionalista etc. Essa transformação da Lingüística é visível quando observamos as inúmeras apresentações de trabalhos rotulados como “análise do discurso” nas programações de eventos clássicos da área como os Seminários do Grupo de Estudos Lingüísticos (GEL);  
b) Ao mesmo tempo, outras abordagens ampliaram o campo tradicionalmente denominado como Análise do Discurso, sustentando-se na diversidade teórica que já existia no surgimento dos estudos do discurso, na França, nos anos 1970, quando   Lévi-Strauss,  Dumézil,  Todorov,  Barthes,  Greimas  etc.     propunham estudos discursivos. É o caso de pesquisas derivadas da semiótica greimasiana45 ou, ainda, dos estudos bakhtinianos46;  
c) É preciso considerar, ainda, que houve ampliação de abordagens no interior da análise do discurso que toma como referência os trabalhos do grupo pecheutiano. Elas derivam da heterogeneidade teórica que constitui o projeto da “AD francesa” e que leva os trabalhos brasileiros atuais, por exemplo, a acentuarem seus  diálogos com a psicanálise lacaniana e com a arqueologia foucaultiana.

Ao enumerar esses movimentos – deixando de lado o fato de que um campo de estudos é permanentemente pressionado por outras determinações conjunturais47 – parto do pressuposto de  que a amplitude atual decorre de transformações situadas tanto nos entornos quanto no interior mesmo da “análise do discurso”48 e que elas são conseqüencias do acúmulo de saberes que as pesquisas foram adicionando tanto aos estudos lingüísticos quanto aos discursivos.
Compreendendo a existência dessa heterogeneidade, não se pode pensar, entretanto, que  tudo o que tome o “discurso” como objeto seja uma mesma “análise do discurso”. Nesse sentido, o Dicionário de Análise do Discurso organizado por P. Charaudeau e D. Maingueneau (2004, p. 13) precisa ser problematizado quando afirma:

No interior das ciências da linguagem, a análise do discurso não nasceu de um ato fundador, mas como resultado da convergência progressiva de movimentos com pressupostos extremamente diferentes, surgidos nos anos 60 na Europa e nos Estados Unidos; eles se desenvolveram em torno do estudo de produções transfrásticas, orais ou escritas nos quais se busca compreender a significação social. Uma grande parte dessas pesquisas foi desenvolvida em domínios empíricos, o que fez com que cada um desenvolvesse uma terminologia própria, ignorando aquilo que se fazia nos domínios vizinhos. A partir dos anos 80, e isso vai-se acentuar consideravelmente nos anos 90, produziu-se uma descompartimentalização generalizada entre as diferentes correntes teóricas que tomaram o “discurso” como objeto. A publicação deste dicionário consagra esse fenômeno.

Certamente, ao afirmar que a análise do discurso “não nasceu de um gesto fundador”, os autores do Dicionário recusam a “paternidade” pecheutiana desse campo49 e, ao mesmo tempo, acentuam a dispersão das abordagens (“convergência progressiva de movimentos com pressupostos extremamente diferentes”). Se há essa dispersão, o que permite considerar as propostas divergentes como pertencendo a um mesmo campo da “análise do discurso”? Para Charaudeau e  Maingueneau, é o fato de convergirem ao tomarem como objeto o “discurso”, entre aspas, tal a disparidade desse “objeto” que as unifica em um campo... Para os autores, a publicação do Dicionário legitima o campo em sua diversidade: o Dicionário é um gesto fundador que, ao reunir a heterogeneidade em um mesmo espaço (o dos verbetes produzidos por diversos pesquisadores), cria a Análise do Discurso da atualidade. Se essa legitimação/criação é problemática, mais ainda é a afirmação, feita pelos autores desse Dicionário, de que os trabalhos de Michel Pêcheux (que eles denominam, vagamente, como “Escola Francesa”) e de Michel Foucault (que eles não reconhecem como sendo de “análise do discurso”) contribuíram para ocultar a diversidade de linhas e impediram a emergência e a visibilidade do campo em sua heterogeneidade: 

A França foi um dos maiores centros de desenvolvimento da análise do discurso. Nos anos 60, os trabalhos da “Escola Francesa” e as reflexões de Michel Foucault em A Arqueologia do Saber produziram uma imagem muito forte das pesquisas francófonas, mas isso não aconteceu sem prejuízos, já que suas temáticas também contribuíram para ocultar a grande diversidade de trabalhos realizados na França sobre corpora e com desenvolvimentos muito diferentes. (CHARAUDEAU  e MAINGUENEAU, 2004, p. 13)

 Esse Dicionário mostra que há subjetividades na maneira de narrar a história de um campo científico. No caso, os autores, ao mesmo tempo, privilegiam a diversidade de linhas e as englobam em uma grande Análise do Discurso na qual cabem abordagens completamente díspares. Com isso, mapeiam a diversidade mas não conseguem dar conta das singularidades de cada proposta. Para isso seria necessário entender as diferenças teóricas, filosóficas, metodológicas que distinguem esses diferentes estudos. Demarcar as especificidades de cada uma dessas “análises do discurso” é uma tarefa que pode, no mínimo, evitar ingenuidades e mal-entendidos na medida em que se compreendem as bases epistemológicas que sustentam as diferentes formulações. Penso ser mais produtivo não colocar todas as diversidades em um mesmo rótulo que simplifica as divergências. É mais coerente pensar que há várias “análises dos discursos”, expressando na reiteração do plural as diferenças teóricas, metodológicas e de objetos de análise. Essa pluralidade deve-se à heterogeneidade teórica necessária para a abordagem do discurso, à  sua  complexidade. Análise do Discurso é um campo de vizinhanças teóricas: se entendemos “discurso” como produção de sentidos, realizada por sujeitos histórico-sociais, por meio da materialidade da linguagem, temos necessidade de articular teorias da linguagem, do sujeito, do histórico-social. Entender as diferentes ADs Brasileiras é, portanto, definir quais teorias constituem as concepções de linguagem, sujeito, sociedade, história em cada proposta e, a partir disso, delimitar em qual espaço epistemológico nos situamos no interior desse diagrama complexo.


Leia o trabalho completo, clique aqui.




45 Quando, no projeto semiótico de Greimas, se propõe a existência de um “nível discursivo” como uma das etapas do percurso gerativo do sentido, evidentemente, trata-se de um conceito de “discurso” bastante diferente – em suas bases conceituais – do que é entendido como “discurso” nos trabalhos de Pêcheux e de Foucault. Veja-se, por exemplo, o clássico estudo Elementos de Análise do Discurso (FIORIN, 1989).



46 Considerando que a “descoberta” de Bakhtin, no contexto francês, na década de 1960, deveu-se aos trabalhos de Julia Kristeva e T. Todorov.


47 E limitando apenas às leituras brasileiras das heranças francesas. Um estudo mais amplo sobre o que significa “AD Brasileira” precisa considerar que há, por exemplo, a leitura anglo-saxônica da tradição francesa que constitui a Análise Crítica do Discurso, na qual encontramos autores como Fairclough e Coulthard interpretando Foucault e Pêcheux (FAIRCLOUGH, 2001; MAGALHÃES, 2001).



48 A própria denominação do campo tem flutuado entre “análise do discurso” e “análise de discurso”. Isso ocorreu também na França, nos anos 1980, quando a ampliação dos corpora para além dos discursos políticos escritos levou Michel Pêcheux, em seus últimos textos, a adotar “análise de discurso”.


49 D. Maldidier, em seu texto “Elementos para uma história da Análise do Discurso na França” atribui a Michel Pêcheux e a Jean Dubois a “dupla fundação da Análise do Discurso” (MALDIDIER, 1997, p. 15).




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