No diagrama da AD Brasileira: heterotopias de Michel Foucault
Maria do Rosario Gregolin
A
época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do
simultâneo, época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado,
do disperso. Estamos em um momento em que o mundo se experimenta menos como uma
grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que
religa pontos e que entrecruza sua trama. (Michel Foucault, Outros espaços,
2001, p. 414)
1. O
que é “AD Brasileira”?
O tema proposto para discussão – O
que quer, o que pode a Análise do Discurso Brasileira? – exige que seja
enunciada uma questão anterior: o que entendemos por “AD Brasileira”?
Trata-se de uma pergunta pertinente
pois os significados da expressão “AD Brasileira”, hoje, são muito amplos. Se
até meados dos anos 1990 esse rótulo se referia a um lugar disciplinar que
delimitava um campo de pesquisas derivado da chamada “análise do discurso de
linha francesa”, cuja referência principal é a obra de Michel Pêcheux, a partir
de então houve uma progressiva mudança nesse estatuto, pressionada por alguns
movimentos próprios ao desenvolvimento dos saberes na História:
a)
Mudanças epistemológicas no campo da Lingüística levaram-na a tomar outros
objetos, além do escopo da frase, e a estender-se aos níveis do “texto” e do
“discurso”. Toma-se “discurso”, hoje, por exemplo, em pesquisas da Lingüística
Textual, da Lingüística Funcionalista etc. Essa transformação da Lingüística é
visível quando observamos as inúmeras apresentações de trabalhos rotulados como
“análise do discurso” nas programações de eventos clássicos da área como os
Seminários do Grupo de Estudos Lingüísticos (GEL);
b)
Ao mesmo tempo, outras abordagens ampliaram o campo tradicionalmente denominado
como Análise do Discurso, sustentando-se na diversidade teórica que já existia
no surgimento dos estudos do discurso, na França, nos anos 1970, quando Lévi-Strauss, Dumézil,
Todorov, Barthes, Greimas
etc. propunham estudos
discursivos. É o caso de pesquisas derivadas da semiótica greimasiana45 ou,
ainda, dos estudos bakhtinianos46;
c)
É preciso considerar, ainda, que houve ampliação de abordagens no interior da
análise do discurso que toma como referência os trabalhos do grupo pecheutiano.
Elas derivam da heterogeneidade teórica que constitui o projeto da “AD
francesa” e que leva os trabalhos brasileiros atuais, por exemplo, a acentuarem
seus diálogos com a psicanálise
lacaniana e com a arqueologia foucaultiana.
Ao enumerar esses
movimentos – deixando de lado o fato de que um campo de estudos é
permanentemente pressionado por outras determinações conjunturais47 – parto do
pressuposto de que a amplitude atual
decorre de transformações situadas tanto nos entornos quanto no interior mesmo
da “análise do discurso”48 e que elas são conseqüencias do acúmulo de saberes
que as pesquisas foram adicionando tanto aos estudos lingüísticos quanto aos
discursivos.
Compreendendo a
existência dessa heterogeneidade, não se pode pensar, entretanto, que tudo o que tome o “discurso” como objeto seja
uma mesma “análise do discurso”. Nesse sentido, o Dicionário de Análise do
Discurso organizado por P. Charaudeau e D. Maingueneau (2004, p. 13) precisa
ser problematizado quando afirma:
No interior das ciências da
linguagem, a análise do discurso não nasceu de um ato fundador, mas como
resultado da convergência progressiva de movimentos com pressupostos
extremamente diferentes, surgidos nos anos 60 na Europa e nos Estados Unidos;
eles se desenvolveram em torno do estudo de produções transfrásticas, orais ou
escritas nos quais se busca compreender a significação social. Uma grande parte
dessas pesquisas foi desenvolvida em domínios empíricos, o que fez com que cada
um desenvolvesse uma terminologia própria, ignorando aquilo que se fazia nos
domínios vizinhos. A partir dos anos 80, e isso vai-se acentuar
consideravelmente nos anos 90, produziu-se uma descompartimentalização
generalizada entre as diferentes correntes teóricas que tomaram o “discurso”
como objeto. A publicação deste dicionário consagra esse fenômeno.
Certamente, ao afirmar
que a análise do discurso “não nasceu de um gesto fundador”, os autores do
Dicionário recusam a “paternidade” pecheutiana desse campo49 e, ao mesmo tempo,
acentuam a dispersão das abordagens (“convergência progressiva de movimentos
com pressupostos extremamente diferentes”). Se há essa dispersão, o que permite
considerar as propostas divergentes como pertencendo a um mesmo campo da
“análise do discurso”? Para Charaudeau e
Maingueneau, é o fato de convergirem ao tomarem como objeto o
“discurso”, entre aspas, tal a disparidade desse “objeto” que as unifica em um
campo... Para os autores, a publicação do Dicionário legitima o campo em sua
diversidade: o Dicionário é um gesto fundador que, ao reunir a heterogeneidade
em um mesmo espaço (o dos verbetes produzidos por diversos pesquisadores), cria
a Análise do Discurso da atualidade. Se essa legitimação/criação é
problemática, mais ainda é a afirmação, feita pelos autores desse Dicionário,
de que os trabalhos de Michel Pêcheux (que eles denominam, vagamente, como
“Escola Francesa”) e de Michel Foucault (que eles não reconhecem como sendo de
“análise do discurso”) contribuíram para ocultar a diversidade de linhas e
impediram a emergência e a visibilidade do campo em sua heterogeneidade:
A França foi um dos maiores centros
de desenvolvimento da análise do discurso. Nos anos 60, os trabalhos da “Escola
Francesa” e as reflexões de Michel Foucault em A Arqueologia do Saber
produziram uma imagem muito forte das pesquisas francófonas, mas isso não
aconteceu sem prejuízos, já que suas temáticas também contribuíram para ocultar
a grande diversidade de trabalhos realizados na França sobre corpora e com
desenvolvimentos muito diferentes. (CHARAUDEAU
e MAINGUENEAU, 2004, p. 13)
Esse Dicionário mostra que há subjetividades
na maneira de narrar a história de um campo científico. No caso, os autores, ao
mesmo tempo, privilegiam a diversidade de linhas e as englobam em uma grande
Análise do Discurso na qual cabem abordagens completamente díspares. Com isso,
mapeiam a diversidade mas não conseguem dar conta das singularidades de cada
proposta. Para isso seria necessário entender as diferenças teóricas,
filosóficas, metodológicas que distinguem esses diferentes estudos. Demarcar as
especificidades de cada uma dessas “análises do discurso” é uma tarefa que
pode, no mínimo, evitar ingenuidades e mal-entendidos na medida em que se
compreendem as bases epistemológicas que sustentam as diferentes formulações.
Penso ser mais produtivo não colocar todas as diversidades em um mesmo rótulo
que simplifica as divergências. É mais coerente pensar que há várias “análises
dos discursos”, expressando na reiteração do plural as diferenças teóricas,
metodológicas e de objetos de análise. Essa pluralidade deve-se à
heterogeneidade teórica necessária para a abordagem do discurso, à sua complexidade.
Análise do Discurso é um campo de vizinhanças teóricas: se entendemos
“discurso” como produção de sentidos, realizada por sujeitos histórico-sociais,
por meio da materialidade da linguagem, temos necessidade de articular teorias
da linguagem, do sujeito, do histórico-social. Entender as diferentes ADs
Brasileiras é, portanto, definir quais teorias constituem as concepções de
linguagem, sujeito, sociedade, história em cada proposta e, a partir disso, delimitar
em qual espaço epistemológico nos situamos no interior desse diagrama complexo.
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45 Quando, no projeto semiótico de Greimas, se propõe a existência de um “nível discursivo” como uma das etapas do percurso gerativo do sentido, evidentemente, trata-se de um conceito de “discurso” bastante diferente – em suas bases conceituais – do que é entendido como “discurso” nos trabalhos de Pêcheux e de Foucault. Veja-se, por exemplo, o clássico estudo Elementos de Análise do Discurso (FIORIN, 1989).
46 Considerando que a “descoberta” de Bakhtin, no contexto francês, na década de 1960, deveu-se aos trabalhos de Julia Kristeva e T. Todorov.
47 E limitando apenas às leituras brasileiras das heranças francesas. Um estudo mais amplo sobre o que significa “AD Brasileira” precisa considerar que há, por exemplo, a leitura anglo-saxônica da tradição francesa que constitui a Análise Crítica do Discurso, na qual encontramos autores como Fairclough e Coulthard interpretando Foucault e Pêcheux (FAIRCLOUGH, 2001; MAGALHÃES, 2001).
48 A própria denominação do campo tem flutuado entre “análise do discurso” e “análise de discurso”. Isso ocorreu também na França, nos anos 1980, quando a ampliação dos corpora para além dos discursos políticos escritos levou Michel Pêcheux, em seus últimos textos, a adotar “análise de discurso”.