segunda-feira, 20 de março de 2017

Análise do Discurso: lugar de enfrentamentos teóricos

In: FERNANDES, C.; SANTOS, J.B. (org.). Teorias lingüísticas: problemáticas contemporâneas. Uberlândia: UFU, 2003Maria do Rosário Gregolin



1. Da lingüística do enunciado à lingüística da enunciação
Em seu livro História e Lingüística, Régine Robin([1]) analisa as mudanças ocorridas no campo dos estudos da linguagem, no final da década de 1960, com a passagem de uma “lingüística da frase” para uma “lingüística do discurso”. Segundo a autora, a lingüística do discurso pretendeu ultrapassar a análise do enunciado e fazer estourar o espartilho que apertava o objeto da Lingüística (p. 88), levando-a a interessar-se por novos objetos - o universo conotativo da linguagem, o jogo das implicações e das pressuposições, o campo retórico-estilístico, as estratégias dos argumentos do discurso, etc. – e, conseqüentemente, desenvolvendo novas formas de encarar a configuração dos saberes. Essa mudança no olhar o seu objeto, fez que a Lingüística vivesse a hora das revisões fundamentais (p.88), que ela revisitasse a oposição entre a langue e a parole e que retomasse a discussão sobre as exclusões da Lingüística saussureana. Essas mudanças tornaram possível o desenvolvimento de uma teoria da enunciação e provocaram o aparecimento de uma Lingüística que se ocupará do discurso. No entanto, isso não se deu de forma abrupta, nem, muito menos, tranqüila: a enunciação ora foi pensada em termos de processo, ora em termos de marcas em uma enunciação enunciada – e, assim, os pesquisadores hesitaram entre uma concepção muito ampla e uma concepção muito restritiva dos elementos que haviam sido deixados em suspenso a partir das propostas de Saussure (o sujeito, a História, o discurso). A importância e a centralidade que a enunciação assume no interior da “lingüística do discurso” evidencia que ela não é um conceito já absolutamente consolidado, mas o signo de um problema.
2.  A lingüística do discurso
Vários autores, como Maingueneau (1976)([2]), propõem que os formalistas russos foram precursores da lingüística do discurso, ressaltando, entretanto, que a perspectiva imanentista impediu que suas pesquisas fizessem avançar a discussão sobre a enunciação. Nos anos 1960, duas direções estavam desenhadas e delinearam o futuro dos trabalhos sobre o discurso: de um lado, o estruturalismo americano possibilitou a ampliação do escopo das abordagens e permitiu a análise das relações transfrásticas; de outro lado, os trabalhos de Benveniste e de Jakobson trouxeram as questões ligadas à comunicação para o interior das análises lingüísticas. A preocupação com a enunciação separa, portanto, uma análise do discurso européia de uma linha americana e, segundo Orlandi (1986, p. 16)([3]),
essas duas direções vão marcar duas maneiras diferentes de pensar a teoria do discurso: uma que a entende como a extensão da Lingüística (que corresponderia à perspectiva americana)  e outra que considera o enveredar para a vertente do discurso o sintoma de uma crise interna da Lingüística, principalmente na área da semântica. Assim, a tendência européia , partindo de ‘uma relação necessária entre o dizer e as condições de produção desse dizer’ coloca a exterioridade como marca fundamental e exige um deslocamento teórico, de caráter conflituoso, que vai recorrer a conceitos exteriores ao domínio de uma lingüística imanente para dar conta da análise de unidades mais complexas da linguagem.

A história da lingüística do discurso pode, então, ser visualizada, a partir dos anos 1960, por meio da relação que se vai estabelecer entre a Lingüística e outras disciplinas, na busca da interdisciplinaridade para a análise de um objeto “além da frase”, que exige a abordagem da articulação entre o lingüístico e o seu “exterior”:
a)      Esse é o objetivo da sociolingüística. No entanto, ela não problematiza o estatuto da relação entre a ordem do discurso e a ordem sócio-histórica. Por isso, ela não consegue solucionar a relação entre a análise “interna” e a análise “externa”, e passa da análise lingüística à busca de uma covariância com o nível social. Desde cedo evidenciou-se essa fragilidade das análises, já que, para explicar o “discurso”, é necessário construir um objeto descritível por processos lingüísticos, mas que se integre a uma teoria geral das sociedades (Robin, 1977, p.92);
b)      Algumas propostas, apesar de terem passado ao nível além da frase, permaneceram apenas “internas” (Lingüística Textual; gramáticas de texto), ou tomaram a “enunciação” em sentido lógico (pragmática, atos de fala, etc.);
c)      Outras propostas são apenas conteudísticas e deixam de fora da análise os aspectos lingüísticos. É o caso de trabalhos realizados no campo da pedagogia, da sociologia, da história, da antropologia, etc. que aplicam conceitos de correntes da “lingüística do discurso”. O problema desses estudos é a opção pela abordagem temática, negligenciando-se aspectos lingüísticos (por exemplo, a estrutura sintática dos textos, o léxico específico e as redes semânticas que se estabelecem entre os vocábulos). Da mesma maneira, não se trata do nível propriamente discursivo, sua estrutura, sua retórica, os mecanismos de enunciação[4].





Leia o trabalho completo, clique aqui.



([1]) Robin, Regine. História e Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977.
([2]) Maingueneau, Dominique. Iniciação aos métodos de análise do discurso. Paris: Hachette, 1976.
([3]) Orlandi, E. A análise do discurso: algumas observações. Em: DELTA, vol. 2, nº 1, 1986.
[4] Segundo Robin, há, evidentemente, exceções. Alguns historiadores não trabalharam com séries temáticas, mas com uma tipologia de texto; neles a estrutura lingüística do texto é levada em consideração: é pela mudança do tipo de discurso que o pesquisador vai inferir as grandes rupturas da sensibilidade de uma certa época. Vovelle, por exemplo, analisou testamentos e verificou que na época barroca eles eram pomposos, o sujeito fazia súplicas aos santos de devoção. A partir de 1760 houve uma laicização (“despovoou-se o panteão dos intercessores”) e uma individualização do discurso que apontam para uma “descristianização” da idéia da morte expressa discursivamente nos testamentos.



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