sábado, 25 de março de 2017

Michel Foucault e os micro-poderes

Maria do Rosário Gregolin

Em muitos dos seus ditos e escritos, Michel Foucault trata da genealogia dos poderes, abordando, a partir de análises históricas, as tecnologias do poder e a produção dos saberes na sociedade ocidental[2]. Ocupa lugar central, nesses estudos, a idéia de que, historicamente, desenvolveram-se sociedades disciplinares, nas quais o poder, exercido sobre os corpos, obedece a técnicas e mecanismos que organizam o sistema de poder e de submissão. Segundo as teses foucaultianas, o poder está fundamentalmente ligado ao corpo, em todas as sociedades modernas, uma vez que é sobre ele que se impõem as obrigações, as limitações e as proibições. É, pois, na “redução materialista da alma a uma teoria geral do adestramento” que se instala e reina a docilidade. É dócil o corpo que pode ser submetido, utilizado, transformado, aperfeiçoado em função do poder. Em Vigiar e Punir (1987) Michel Foucault mostra que, nos séculos XVII e XVIII, junto com a aparição da arte do corpo humano, houve a descoberta do corpo como objeto transformável em eficiência e alvo do controle. É o que ele denomina de “momento das disciplinas”. Desde então, os mecanismos disciplinares que organizam os corpos nas prisões, nos hospícios, nos quartéis, nas empresas, nas escolas, etc. tomam a forma social mais ampla de uma sofisticada e sutil tecnologia de submissão (movimentos, gestos, silêncios que orientam o cotidiano).
            Esse poder que se exerce sobre o corpo é ininterrupto e, por isso, naturalizado, é internalizado pelo sujeito. A sociedade moderna construiu uma maquinaria de poder através do controle dos corpos (anatomia política), isto é, o corpo para fazer não o que se quer, mas para operar como se quer. É a tecnologia da disciplina fabricando os corpos submissos. Essa anatomia política desenha-se aos poucos até alcançar um método geral e espalhar-se numa microfísica do poder que vem evoluindo em técnicas cada vez mais sutis, mais sofisticadas e, com sua aparente inocência, vem tomando o corpo social em sua quase totalidade. Há vários mecanismos através dos quais essa microfísica se materializa:

a)      Primeiro, ela está no contexto disciplinar dos regulamentos minuciosos, do olhar das inspeções e do controle sobre o corpo que toma forma nas escolas, prisões, quartéis etc. Nessa microfísica do poder, a disposição dos corpos permite o olhar, isto é, a vigilância.  A introjeção, nos corpos, dessa disciplina dos espaços ganha prolongamento social, expresso nas ações dos corpos em sua vida cotidiana, o que produz as “arrumações” de todos os espaços. (o poder pela visibilidade). Assim, a subordinação à vigilância contínua é reproduzida pela coerção interna do indivíduo, por meio da qual o próprio “eu” coloca-se no espaço possível de vigilância - lugar da submissão e da reprodução “voluntária”;
b)      Em segundo lugar, a disciplina organiza o tempo, com o conseqüente controle e regulamentação sobre os ciclos da repetição. O ritmo da atividade é mais importante que os horários, pois estes são impostos de fora sobre os corpos. Organiza-se o império da regularidade, do ritmo, pois “é proibido perder tempo" já que "tempo é dinheiro”. Assim como na distribuição dos espaços, o controle sobre o tempo permanece introjetado na realização social da vida cotidiana e em todos os setores, inclusive na vida “pessoal e íntima”. O tempo, que não é controlado pelo indivíduo, mas pelo poder, será sempre algo inexorável, que lhe determina a ação. O tempo, assim, não é próprio, individual, mas coletivizado pelo sistema de controle e a ele subordinam-se os corpos;
c)      Em terceiro lugar, a vigilância aparece como algo que deve ser contínua, ininterrupta e que, acima de tudo, precisa ser vista pelos indivíduos que a ela estão expostos como perpétua, permanente; do mesmo modo, é preciso que ela não tenha limites, que esteja presente em toda a extensão do espaço. A vigilância é, pois, um olhar invisível, que deve impregnar quem é vigiado de tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem o olha. O poder sobre os corpos, desta forma, atinge o ápice da submissão, pois o corpo não distingue entre si mesmo e o olho do poder;
d)     Finalmente, a disciplina produz saber. É o registro contínuo do conhecimento que gera poder. Em nossas sociedades a busca do anonimato cresce em função da libertação dos corpos do domínio do saber. O caderno de anotação, a ficha secreta, a prova, a correção, etc. são materialidades que mostram o acúmulo do saber produzindo poder.

          Funcionando junto com outras formas sutis de aprisionamento dos corpos, essas técnicas disciplinares (sobre o espaço, o tempo, a vigilância e o saber) são a garantia para o adestramento, para a subordinação. Primeiro, o controle adquire a forma de uma vigilância geral, o Panopticon, exercitada, na sociedade moderna, sob uma variedade de formas, que vão desde as câmeras colocadas em cada canto dos prédios até as estatísticas e os sistemas de segurança que são usados para aferir e modelar o cotidiano. Em segundo lugar, esse novo sistema de controle toma a forma dos treinamentos disciplinares. Foucault enxerga essa nova disciplina em quase todas as instituições, a partir do século XIX, cujo propósito é produzir "o sujeito individual obediente aos hábitos, regras, ordens; uma autoridade que é exercida continuamente em volta e acima dele e que ele deve internalizar para funcionar automaticamente nele" (FOUCAULT, 1979, p. 227).
No entanto, ao abordar essa "disciplinarização" das sociedades capitalistas, Foucault não enxerga os indivíduos como autômatos a aceitarem passivamente todas as determinações do poder. O que ele quer enfatizar é que a sociedade procurou um ajustamento cada vez mais controlado - cada vez mais racional e econômico - entre as atividades produtivas, as redes de comunicação e o jogo das relações de poder (FOUCAULT, 1995). Se só houvesse a escravização, a submissão e a passividade, seria o fim da História. Para Foucault, apesar dessa "disciplinarização", do controle e da vigilância contínua, nenhum poder é absoluto ou permanente; ele é, pelo contrário, transitório e circular, o que permite a aparição das fissuras onde é possível a substituição da docilidade pela meta contínua e infindável da libertação dos corpos.  O exercício do poder não é um fato bruto, um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou se quebra; ao contrário, ele se elabora, transforma-se, organiza-se, dota-se de procedimentos mais ou menos ajustados.
Por isso, pensando as relações entre o sujeito e o poder, Foucault (1995) propõe analisar as formas de resistência, ver onde elas se inscrevem, descobrir os seus pontos de aplicação e os métodos que elas utilizam. Sua análise focaliza, portanto, as relações de poder através do afrontamento de estratégias. Para compreender em que consistem as relações de poder é necessário analisar as formas de resistência, as lutas que colocam em questão o estatuto do indivíduo e que, segundo Foucault, tomam duas vias: por um lado, elas afirmam o direito à diferença e sublinham tudo o que pode tornar os indivíduos verdadeiramente individuais; por outro lado, elas combatem tudo o que pode isolar o indivíduo, desligá-lo dos outros, cindir a vida comunitária. Essas lutas não são exatamente por ou contra o "indivíduo", mas elas se opõem àquilo que se pode designar como "governo pela individualização". Elas opõem uma resistência aos efeitos de poder que estão ligados aos saberes, à competência e à qualificação. 
Aos olhos de Foucault, as lutas, na sociedade contemporânea, giram em torno de uma mesma questão: a da busca da identidade. Elas são uma recusa às abstrações, uma recusa à violência do Estado econômico e ideológico que ignora que somos indivíduos, e também uma recusa à inquisição científica e administrativa que determina a nossa identidade. Em suma, o principal objetivo dessas lutas não é o de atacar esta ou aquela instituição de poder, ou grupo, ou classe ou elite, mas sim uma técnica particular, uma forma de poder que se exerce sobre a vida cotidiana imediata[3]. Esse poder - contra o qual os sujeitos se digladiam em micro-lutas cotidianas - classifica os indivíduos em categorias, designa-os pela individualidade, liga-os a uma pretensa identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que é necessário reconhecer e que os outros devem reconhecer neles. É uma forma de poder que transforma os indivíduos em sujeitos. Adotando uma perspectiva geral, pode-se entender que há três tipos de lutas pela construção da identidade: a) aquelas que se opõem às formas de dominação (étnicas, sociais e religiosas); b) aquelas que denunciam as formas de exploração que separam o indivíduo daquilo que produz; e c) aquelas que combatem tudo o que liga o indivíduo a ele mesmo e asseguram assim a submissão aos outros (lutas contra a sujeição, contra as diversas formas de subjetividade e de submissão).
Para Foucault, nas sociedades ocidentais modernas, predominam as lutas contra a submissão da subjetividade. Esse tipo de luta prevalece em nossa sociedade como consequência de uma nova forma de poder político, que se desenvolveu de maneira contínua depois do século XVI. Esta nova estrutura política é o Estado que, na maior parte das vezes, é um tipo de poder político que se ocupa apenas dos interesses de um grupo de cidadãos escolhidos. No entanto, o poder do Estado - e é essa uma das razões da sua força - é uma forma de poder, simultaneamente, globalizante e totalitário. Jamais, na história das sociedades humanas se encontrou uma combinação tão complexa de técnicas de individualização e de procedimentos totalizadores. Por meio da ação “pastoral”, desenvolve-se, na sociedade moderna, uma tática individualizante, característica de toda uma série de poderes múltiplos (da família, da medicina, da psiquiatria, da educação, dos empregadores, etc.) cujo objetivo principal é o de forjar representações de subjetividades e impor formas de individualidades. Por isso, para Foucault, o problema - ao mesmo tempo político, ético, social e filosófico -  que se nos coloca atualmente não é o de tentar libertar o indivíduo do Estado e das suas instituições, mas o de libertá-lo das representações de individualização criadas pelo poder globalizador.
Longe de ser um autômato passivo, o sujeito vive numa constante tensão entre a aceitação e a recusa do poder, numa espécie de batalha entre a relutância do querer e a intransitividade da liberdade. 



*Resumo do texto de VEIGA NETO, A. A ordem das disciplinas. Porto Alegre: UFRGS, 2004. Texto elaborado para leitura dos alunos.
[2] Principalmente, em Vigiar e Punir(1987) ; História da Sexualidade I (A Vontade de Saber) (1988) e em Microfísica do Poder (1979).
[3] Modernamente, a resistência transcende a noção de classe; daí porque é mais correto falar em “movimentos sociais”. Ao contrário das teses centralizadoras do marxismo, em Foucault o poder e a resistência interagem um sobre o outro, num movimento dialético permanente e infindo.


Referências
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. 26ª edição. Rio de Janeiro: edições Graal, 1979.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber (1976). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir (1975). Petrópolis: Vozes, 1987.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUSS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995
VEIGA NETO, A. A ordem das disciplinas. Porto Alegre: UFRGS, 2004





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