Michel Foucault e os micro-poderes
Maria do Rosário Gregolin
Em muitos dos seus ditos
e escritos, Michel Foucault trata da genealogia dos poderes, abordando, a
partir de análises históricas, as tecnologias do poder e a produção dos saberes
na sociedade ocidental[2].
Ocupa lugar central, nesses estudos, a idéia de que, historicamente, desenvolveram-se
sociedades disciplinares, nas quais o poder, exercido sobre os
corpos, obedece a técnicas e mecanismos que organizam o sistema de poder e de
submissão. Segundo as teses foucaultianas, o poder está fundamentalmente ligado
ao corpo, em todas as sociedades modernas, uma vez que é sobre ele que se
impõem as obrigações, as limitações e as proibições. É, pois, na “redução
materialista da alma a uma teoria geral do adestramento” que se instala e reina
a docilidade. É dócil o corpo que pode ser submetido, utilizado,
transformado, aperfeiçoado em função do poder. Em Vigiar e Punir (1987)
Michel Foucault mostra que, nos séculos XVII e XVIII, junto com a aparição da
arte do corpo humano, houve a descoberta do corpo como objeto transformável em
eficiência e alvo do controle. É o que ele denomina de “momento das
disciplinas”. Desde então, os mecanismos disciplinares que organizam os corpos
nas prisões, nos hospícios, nos quartéis, nas empresas, nas escolas, etc. tomam
a forma social mais ampla de uma sofisticada e sutil tecnologia de submissão
(movimentos, gestos, silêncios que orientam o cotidiano).
Esse poder que se exerce sobre o corpo é ininterrupto e,
por isso, naturalizado, é internalizado pelo sujeito. A sociedade moderna
construiu uma maquinaria de poder através do controle dos corpos (anatomia
política), isto é, o corpo para fazer não o que se quer, mas para operar como
se quer. É a tecnologia da disciplina fabricando os corpos submissos. Essa anatomia política desenha-se aos poucos até alcançar um
método geral e espalhar-se numa microfísica do poder que vem
evoluindo em técnicas cada vez mais sutis, mais sofisticadas e, com sua
aparente inocência, vem tomando o corpo social em sua quase totalidade. Há
vários mecanismos através dos quais essa microfísica se materializa:
a)
Primeiro, ela está no contexto disciplinar dos regulamentos
minuciosos, do olhar das inspeções e do controle sobre o corpo que toma forma
nas escolas, prisões, quartéis etc. Nessa microfísica do poder, a disposição
dos corpos permite o olhar, isto é, a vigilância. A introjeção, nos
corpos, dessa disciplina dos espaços ganha prolongamento social, expresso nas
ações dos corpos em sua vida cotidiana, o que produz as “arrumações” de todos
os espaços. (o poder pela visibilidade). Assim, a subordinação à vigilância
contínua é reproduzida pela coerção interna do indivíduo, por meio da qual o
próprio “eu” coloca-se no espaço possível de vigilância - lugar da submissão e
da reprodução “voluntária”;
b)
Em segundo lugar, a disciplina organiza o tempo, com o conseqüente
controle e regulamentação sobre os ciclos da repetição. O ritmo da atividade é
mais importante que os horários, pois estes são impostos de fora sobre os
corpos. Organiza-se o império da regularidade, do ritmo, pois “é proibido perder
tempo" já que "tempo é dinheiro”. Assim como na distribuição dos
espaços, o controle sobre o tempo permanece introjetado na realização social da
vida cotidiana e em todos os setores, inclusive na vida “pessoal e íntima”. O
tempo, que não é controlado pelo indivíduo, mas pelo poder, será sempre algo
inexorável, que lhe determina a ação. O tempo, assim, não é próprio,
individual, mas coletivizado pelo sistema de controle e a ele subordinam-se os
corpos;
c)
Em terceiro lugar, a vigilância aparece como algo que deve ser
contínua, ininterrupta e que, acima de tudo, precisa ser vista pelos indivíduos
que a ela estão expostos como perpétua, permanente; do mesmo modo, é preciso
que ela não tenha limites, que esteja presente em toda a extensão do espaço. A
vigilância é, pois, um olhar invisível, que deve impregnar quem é vigiado de
tal modo que este adquira de si mesmo a visão de quem o olha. O poder sobre os
corpos, desta forma, atinge o ápice da submissão, pois o corpo não distingue
entre si mesmo e o olho do poder;
d) Finalmente, a disciplina
produz saber. É o registro contínuo do conhecimento que gera poder. Em nossas
sociedades a busca do anonimato cresce em função da libertação dos corpos do
domínio do saber. O caderno de anotação, a ficha secreta, a prova, a correção,
etc. são materialidades que mostram o acúmulo do saber produzindo poder.
Funcionando junto com outras formas sutis de aprisionamento dos corpos, essas técnicas disciplinares (sobre o espaço, o tempo, a vigilância e o saber) são a garantia para o adestramento, para a subordinação. Primeiro, o controle adquire a forma de uma vigilância geral, o Panopticon, exercitada, na sociedade moderna, sob uma variedade de formas, que vão desde as câmeras colocadas em cada canto dos prédios até as estatísticas e os sistemas de segurança que são usados para aferir e modelar o cotidiano. Em segundo lugar, esse novo sistema de controle toma a forma dos treinamentos disciplinares. Foucault enxerga essa nova disciplina em quase todas as instituições, a partir do século XIX, cujo propósito é produzir "o sujeito individual obediente aos hábitos, regras, ordens; uma autoridade que é exercida continuamente em volta e acima dele e que ele deve internalizar para funcionar automaticamente nele" (FOUCAULT, 1979, p. 227).
No entanto, ao abordar
essa "disciplinarização" das sociedades capitalistas, Foucault não
enxerga os indivíduos como autômatos a aceitarem passivamente todas as
determinações do poder. O que ele quer enfatizar é que a sociedade procurou um
ajustamento cada vez mais controlado - cada vez mais racional e econômico -
entre as atividades produtivas, as redes de comunicação e o jogo das relações
de poder (FOUCAULT, 1995). Se só houvesse a escravização, a submissão e a
passividade, seria o fim da História. Para Foucault, apesar dessa
"disciplinarização", do controle e da vigilância contínua, nenhum poder é absoluto ou permanente; ele é, pelo
contrário, transitório e circular, o que permite a aparição das fissuras onde é
possível a substituição da docilidade pela meta contínua e infindável da
libertação dos corpos. O exercício do poder não é um fato bruto,
um dado institucional, nem uma estrutura que se mantém ou se quebra; ao
contrário, ele se elabora, transforma-se, organiza-se, dota-se de procedimentos
mais ou menos ajustados.
Por isso, pensando as
relações entre o sujeito e o poder, Foucault (1995) propõe analisar as formas
de resistência, ver onde elas se inscrevem, descobrir os seus pontos de
aplicação e os métodos que elas utilizam. Sua análise focaliza, portanto, as
relações de poder através do afrontamento de estratégias. Para compreender em
que consistem as relações de poder é necessário analisar as formas de
resistência, as lutas que colocam em questão o estatuto do indivíduo e que,
segundo Foucault, tomam duas vias: por um lado, elas afirmam o direito à
diferença e sublinham tudo o que pode tornar os indivíduos verdadeiramente
individuais; por outro lado, elas combatem tudo o que pode isolar o indivíduo,
desligá-lo dos outros, cindir a vida comunitária. Essas lutas não são
exatamente por ou contra o "indivíduo", mas elas se opõem àquilo que
se pode designar como "governo pela individualização". Elas opõem uma
resistência aos efeitos de poder que estão ligados aos saberes, à competência e
à qualificação.
Aos olhos de Foucault, as
lutas, na sociedade contemporânea, giram em torno de uma mesma questão: a da
busca da identidade. Elas são uma recusa às abstrações, uma recusa à violência
do Estado econômico e ideológico que ignora que somos indivíduos, e também uma
recusa à inquisição científica e administrativa que determina a nossa
identidade. Em suma, o principal objetivo dessas lutas não é o de atacar esta
ou aquela instituição de poder, ou grupo, ou classe ou elite, mas sim uma
técnica particular, uma forma de poder que se exerce sobre a vida cotidiana
imediata[3].
Esse poder - contra o qual os sujeitos se digladiam em micro-lutas cotidianas -
classifica os indivíduos em categorias, designa-os pela individualidade,
liga-os a uma pretensa identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que é
necessário reconhecer e que os outros devem reconhecer neles. É uma forma de
poder que transforma os indivíduos em sujeitos. Adotando
uma perspectiva geral, pode-se entender que há três tipos de lutas pela
construção da identidade: a) aquelas que se opõem às formas de dominação
(étnicas, sociais e religiosas); b) aquelas que denunciam as formas de
exploração que separam o indivíduo daquilo que produz; e c) aquelas que
combatem tudo o que liga o indivíduo a ele mesmo e asseguram assim a submissão
aos outros (lutas contra a sujeição, contra as diversas formas de subjetividade
e de submissão).
Para Foucault, nas
sociedades ocidentais modernas, predominam as lutas contra a submissão da
subjetividade. Esse tipo de luta prevalece em nossa sociedade como consequência
de uma nova forma de poder político, que se desenvolveu de maneira contínua
depois do século XVI. Esta nova estrutura política é o Estado que, na
maior parte das vezes, é um tipo de poder político que se ocupa apenas dos interesses
de um grupo de cidadãos escolhidos. No entanto, o poder do Estado - e é essa
uma das razões da sua força - é uma forma de poder, simultaneamente,
globalizante e totalitário. Jamais, na história das sociedades humanas se
encontrou uma combinação tão complexa de técnicas de individualização e de
procedimentos totalizadores. Por meio da ação “pastoral”, desenvolve-se, na
sociedade moderna, uma tática individualizante, característica de toda uma
série de poderes múltiplos (da família, da medicina, da psiquiatria, da
educação, dos empregadores, etc.) cujo objetivo principal é o de forjar
representações de subjetividades e impor formas de individualidades. Por isso,
para Foucault, o problema - ao mesmo tempo político, ético, social e filosófico
- que se nos coloca atualmente não é o
de tentar libertar o indivíduo do Estado e das suas instituições, mas o de
libertá-lo das representações de individualização criadas pelo poder
globalizador.
Longe de ser um autômato
passivo, o sujeito vive numa constante tensão entre a aceitação e a recusa do
poder, numa espécie de batalha entre a relutância do querer e a
intransitividade da liberdade.
*Resumo
do texto de VEIGA NETO, A. A ordem das
disciplinas. Porto Alegre: UFRGS, 2004. Texto elaborado para leitura dos
alunos.
[2] Principalmente, em Vigiar e Punir(1987) ; História
da Sexualidade I (A Vontade de Saber) (1988)
e em Microfísica do Poder (1979).
[3]
Modernamente, a resistência transcende a noção de classe; daí porque é mais
correto falar em “movimentos sociais”. Ao contrário das teses centralizadoras
do marxismo, em Foucault o poder e a resistência interagem um sobre o outro,
num movimento dialético permanente e infindo.
Referências
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. 26ª edição. Rio de Janeiro: edições Graal, 1979.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber (1976). Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir (1975). Petrópolis: Vozes, 1987.
FOUCAULT, M. O sujeito e o poder. In: RABINOW, P.; DREYFUSS, H. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995
VEIGA NETO, A. A ordem das disciplinas. Porto Alegre: UFRGS, 2004