O sujeito e o poder
Por
Maria do Rosário Gregolin
“Gostaria de inicialmente dizer
qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos vinte anos. Não foi o de
analisar os fenômenos do poder, nem de lançar as bases para uma tal análise.
Procurei acima de tudo produzir uma história dos diferentes modos de
subjetivação do ser humano na nossa cultura; tratei, nessa ótica, dos três
modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos. Existem
em primeiro lugar os diferentes modos de investigação que procuram aceder ao
estatuto de ciência; penso, por exemplo, na objetivação do sujeito falante na
gramática geral, na filologia e na linguística. Ou também, sempre neste
primeiro modo, na objetivação do sujeito produtivo, do sujeito que produz, em
economia e na análise das riquezas. Ou ainda, para tomar um terceiro exemplo,
na objetivação devida ao simples fato de existir na vida, na história natural
ou na biologia. Na segunda parte do meu trabalho, estudei a objetivação do
sujeito naquilo que designarei de 'práticas divergentes'. O sujeito é quer
dividido no interior dele mesmo, quer dividido dos outros. Este processo faz
dele um objeto. As partilhas entre o louco e o homem são de espírito, o doente
e o indivíduo com boa saúde, o criminoso e o "bem comportado",
ilustra esta tendência. Enfim, tenho procurado estudar - é esse o meu trabalho
em curso - a maneira como um ser humano se transforma em sujeito; tenho
orientado minhas pesquisas na direção da sexualidade, por exemplo - a maneira
como o ser humano tem aprendido a reconhecer-se como sujeito de uma
"sexualidade". Não é, portanto, o poder, mas o sujeito, que constitui
o tema geral das minhas investigações.”
Michel Foucault (o sujeito e o poder)
Pensando
as relações entre o sujeito e o poder,
Foucault (1984) propõe analisar as formas de resistência, entendendo-as como
“catalisadores químicos” que permitem colocar em evidência as relações de
poder, ver onde elas se inscrevem, descobrir os seus pontos de aplicação e os
métodos que elas utilizam. Sua análise focaliza, portanto, as relações de poder
através do afrontamento de estratégias. Para compreender em que consistem as
relações de poder é necessário analisar as formas de resistência e os esforços
desenvolvidos para tentar dissociar essas relações. São lutas que colocam em
questão o estatuto do indivíduo: por um lado, elas afirmam o direito à
diferença e sublinham tudo o que pode tornar os indivíduos verdadeiramente
individuais. Por outro lado, elas combatem tudo o que pode isolar o indivíduo,
desligá-lo dos outros, cindir a vida comunitária, constranger o indivíduo a
debruçar-se sobre si próprio e a ligar-se à sua própria identidade. Essas lutas
não são exatamente por ou contra o "indivíduo", mas elas se opõem
àquilo que se pode designar como "governo pela individualização".
Elas opõem uma resistência aos efeitos de poder que estão ligados aos saberes,
à competência e à qualificação. Elas lutam contra os privilégios do saber. Mas
elas opõem-se também ao mistério, à deformação e a tudo que possa aí haver de
mistificador nas representações que se impõem às pessoas (Foucault, 1984). Para Foucault, na sociedade contemporânea, as
lutas giram em torno de uma mesma questão: a da busca da identidade. Elas são uma recusa às abstrações, uma recusa
à violência do Estado econômico e ideológico que ignora que somos indivíduos, e
também uma recusa à inquisição científica e administrativa que determina a
nossa identidade. Em suma, o principal objetivo dessas lutas não é o de atacar
esta ou aquela instituição de poder, ou grupo, ou classe ou elite, mas sim uma
técnica particular, uma forma de poder que se exerce sobre a vida cotidiana
imediata. Esse poder - contra o qual os sujeitos se digladiam em micro-lutas
cotidianas - classifica os indivíduos em categorias, designa-os pela
individualidade, liga-os a uma pretensa identidade, impõe-lhes uma lei de
verdade que é necessário reconhecer e que os outros devem reconhecer neles. É
uma forma de poder que transforma os indivíduos em sujeitos. Adotando uma
perspectiva geral, pode-se entender que há três tipos de lutas pela construção
da identidade: a) aquelas que se opõem às formas de dominação (étnicas, sociais
e religiosas); b) aquelas que denunciam as formas de exploração que separam o
indivíduo daquilo que produz; e c) aquelas que combatem tudo o que liga o
indivíduo a ele mesmo e asseguram assim a submissão aos outros (lutas contra a
sujeição, contra as diversas formas de subjetividade e de submissão).
Para
Foucault, nas sociedades ocidentais modernas, predominam as lutas contra a
submissão da subjetividade. Esse tipo de luta prevalece em nossa sociedade como
conseqüência de uma nova forma de poder político, que se desenvolveu de maneira
contínua depois do século XVI. Esta nova estrutura política é o Estado
que, na maior parte das vezes, é um tipo de poder político que se ocupa apenas
dos interesses de um grupo de cidadãos escolhidos. No entanto, o poder do
Estado - e é essa uma das razões da sua força - é uma forma de poder,
simultaneamente, globalizante e totalitário. Jamais, na história das sociedades
humanas se encontrou uma combinação tão complexa de técnicas de
individualização e de procedimentos totalizadores. Por meio da ação “pastoral”,
desenvolve-se, na sociedade moderna, uma tática individualizante,
característica de toda uma série de poderes múltiplos (da família, da medicina,
da psiquiatria, da educação, dos empregadores, etc.) cujo objetivo principal é
o de forjar representações de subjetividades e impor formas de
individualidades.
Por
isso, para Foucault, o problema - ao mesmo tempo político, ético, social e
filosófico - que se nos coloca
atualmente não é o de tentar libertar o indivíduo do Estado e das suas
instituições, mas o de libertá-lo das representações de individualização
criadas pelo poder globalizador.
Longe
de ser um autômato passivo, o sujeito vive numa constante tensão entre a
aceitação do poder e a insubmissão da liberdade. Assim, não há uma servidão
voluntária, pois no coração da relação de poder, provocando-a sem cessar,
está a relutância do querer e a intransitividade da liberdade. Mais do que um
antagonismo essencial, há, aí, um agonismo - uma relação que é simultaneamente
incitação recíproca e luta, uma provocação permanente.
Entende-se,
desse modo, que a análise das relações de poder não se pode limitar ao estudo
de uma série de instituições, nem mesmo ao estudo de todas aquelas que merecem
o nome de “político”. As relações de poder enraízam-se no conjunto da rede
social. Isto não quer dizer que há um
princípio de Poder primeiro e fundamental que domina até o menor elemento da
sociedade; mas sim que, a partir da possibilidade de ação sobre a ação dos
outros - que é co-extensiva a toda relação social - formas múltiplas de
disparidade (individual, de objetivos, de institucionalização, de organização)
se definem sob as diferentes formas de poder. As formas e os lugares de
“governo” dos homens uns pelos outros são múltiplas na nossa sociedade: elas se
sobrepõem, se entrecruzam, se limitam e se anulam por vezes, reforçam-se em
outros casos. Referindo-se ao sentido, desta vez restrito, da palavra
“governo”, Foucault (1979) afirma que “as relações de poder foram governamentalizadas,
isto é, elaboradas, racionalizadas e centralizadas sob a forma e sob a caução
das instituições estatais”. O ponto mais
importante, para Foucault, em sua “analítica do poder” é, evidentemente, a
articulação entre relações de poder e estratégias de afrontamento, pois toda
relação de poder implica, potencialmente, uma estratégia de luta, sem que por
isso elas se sobreponham, percam suas especificidades e, finalmente,
confundam-se. Relações de poder e estratégias de luta constituem, uma para a
outra, uma espécie de limite permanente, um ponto de reversão possível. Ao
mesmo tempo, elas constituem uma fronteira: não é possível haver relação de
poder sem pontos de insubmissão que, por definição, lhe escapam. Em suma, toda
estratégia de afrontamento sonha em transformar-se em relação de poder; e toda
relação de poder pende, na medida em que ela segue a sua própria linha de
desenvolvimento e que evita as resistências formais, a tornar-se estratégia
“vitoriosa”. Entre relação de poder e estratégia de luta, há,
constitutivamente, apelo recíproco, encadeamento indefinido e trocas perpétuas.
Referências
Michel
Foucault (1984). O sujeito e o poder. In:
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma
trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1995.
Texto redigido para leitura
na disciplina “Análise do Discurso”, ministrado pela Profa. Maria do Rosário
Gregolin, UFAC, 2008.