segunda-feira, 10 de abril de 2017

O sujeito e o poder

Por Maria do Rosário Gregolin

“Gostaria de inicialmente dizer qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos vinte anos. Não foi o de analisar os fenômenos do poder, nem de lançar as bases para uma tal análise. Procurei acima de tudo produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano na nossa cultura; tratei, nessa ótica, dos três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeitos. Existem em primeiro lugar os diferentes modos de investigação que procuram aceder ao estatuto de ciência; penso, por exemplo, na objetivação do sujeito falante na gramática geral, na filologia e na linguística. Ou também, sempre neste primeiro modo, na objetivação do sujeito produtivo, do sujeito que produz, em economia e na análise das riquezas. Ou ainda, para tomar um terceiro exemplo, na objetivação devida ao simples fato de existir na vida, na história natural ou na biologia. Na segunda parte do meu trabalho, estudei a objetivação do sujeito naquilo que designarei de 'práticas divergentes'. O sujeito é quer dividido no interior dele mesmo, quer dividido dos outros. Este processo faz dele um objeto. As partilhas entre o louco e o homem são de espírito, o doente e o indivíduo com boa saúde, o criminoso e o "bem comportado", ilustra esta tendência. Enfim, tenho procurado estudar - é esse o meu trabalho em curso - a maneira como um ser humano se transforma em sujeito; tenho orientado minhas pesquisas na direção da sexualidade, por exemplo - a maneira como o ser humano tem aprendido a reconhecer-se como sujeito de uma "sexualidade". Não é, portanto, o poder, mas o sujeito, que constitui o tema geral das minhas investigações.” 
Michel Foucault (o sujeito e o poder)

Pensando as relações entre o sujeito e o poder, Foucault (1984) propõe analisar as formas de resistência, entendendo-as como “catalisadores químicos” que permitem colocar em evidência as relações de poder, ver onde elas se inscrevem, descobrir os seus pontos de aplicação e os métodos que elas utilizam. Sua análise focaliza, portanto, as relações de poder através do afrontamento de estratégias. Para compreender em que consistem as relações de poder é necessário analisar as formas de resistência e os esforços desenvolvidos para tentar dissociar essas relações. São lutas que colocam em questão o estatuto do indivíduo: por um lado, elas afirmam o direito à diferença e sublinham tudo o que pode tornar os indivíduos verdadeiramente individuais. Por outro lado, elas combatem tudo o que pode isolar o indivíduo, desligá-lo dos outros, cindir a vida comunitária, constranger o indivíduo a debruçar-se sobre si próprio e a ligar-se à sua própria identidade. Essas lutas não são exatamente por ou contra o "indivíduo", mas elas se opõem àquilo que se pode designar como "governo pela individualização". Elas opõem uma resistência aos efeitos de poder que estão ligados aos saberes, à competência e à qualificação. Elas lutam contra os privilégios do saber. Mas elas opõem-se também ao mistério, à deformação e a tudo que possa aí haver de mistificador nas representações que se impõem às pessoas (Foucault, 1984).  Para Foucault, na sociedade contemporânea, as lutas giram em torno de uma mesma questão: a da busca da identidade. Elas são uma recusa às abstrações, uma recusa à violência do Estado econômico e ideológico que ignora que somos indivíduos, e também uma recusa à inquisição científica e administrativa que determina a nossa identidade. Em suma, o principal objetivo dessas lutas não é o de atacar esta ou aquela instituição de poder, ou grupo, ou classe ou elite, mas sim uma técnica particular, uma forma de poder que se exerce sobre a vida cotidiana imediata. Esse poder - contra o qual os sujeitos se digladiam em micro-lutas cotidianas - classifica os indivíduos em categorias, designa-os pela individualidade, liga-os a uma pretensa identidade, impõe-lhes uma lei de verdade que é necessário reconhecer e que os outros devem reconhecer neles. É uma forma de poder que transforma os indivíduos em sujeitos. Adotando uma perspectiva geral, pode-se entender que há três tipos de lutas pela construção da identidade: a) aquelas que se opõem às formas de dominação (étnicas, sociais e religiosas); b) aquelas que denunciam as formas de exploração que separam o indivíduo daquilo que produz; e c) aquelas que combatem tudo o que liga o indivíduo a ele mesmo e asseguram assim a submissão aos outros (lutas contra a sujeição, contra as diversas formas de subjetividade e de submissão).
Para Foucault, nas sociedades ocidentais modernas, predominam as lutas contra a submissão da subjetividade. Esse tipo de luta prevalece em nossa sociedade como conseqüência de uma nova forma de poder político, que se desenvolveu de maneira contínua depois do século XVI. Esta nova estrutura política é o Estado que, na maior parte das vezes, é um tipo de poder político que se ocupa apenas dos interesses de um grupo de cidadãos escolhidos. No entanto, o poder do Estado - e é essa uma das razões da sua força - é uma forma de poder, simultaneamente, globalizante e totalitário. Jamais, na história das sociedades humanas se encontrou uma combinação tão complexa de técnicas de individualização e de procedimentos totalizadores. Por meio da ação “pastoral”, desenvolve-se, na sociedade moderna, uma tática individualizante, característica de toda uma série de poderes múltiplos (da família, da medicina, da psiquiatria, da educação, dos empregadores, etc.) cujo objetivo principal é o de forjar representações de subjetividades e impor formas de individualidades.
Por isso, para Foucault, o problema - ao mesmo tempo político, ético, social e filosófico -  que se nos coloca atualmente não é o de tentar libertar o indivíduo do Estado e das suas instituições, mas o de libertá-lo das representações de individualização criadas pelo poder globalizador.
Longe de ser um autômato passivo, o sujeito vive numa constante tensão entre a aceitação do poder e a insubmissão da liberdade. Assim, não há uma servidão voluntária, pois no coração da relação de poder, provocando-a sem cessar, está a relutância do querer e a intransitividade da liberdade. Mais do que um antagonismo essencial, há, aí, um agonismo - uma relação que é simultaneamente incitação recíproca e luta, uma provocação permanente.
Entende-se, desse modo, que a análise das relações de poder não se pode limitar ao estudo de uma série de instituições, nem mesmo ao estudo de todas aquelas que merecem o nome de “político”. As relações de poder enraízam-se no conjunto da rede social.  Isto não quer dizer que há um princípio de Poder primeiro e fundamental que domina até o menor elemento da sociedade; mas sim que, a partir da possibilidade de ação sobre a ação dos outros - que é co-extensiva a toda relação social - formas múltiplas de disparidade (individual, de objetivos, de institucionalização, de organização) se definem sob as diferentes formas de poder. As formas e os lugares de “governo” dos homens uns pelos outros são múltiplas na nossa sociedade: elas se sobrepõem, se entrecruzam, se limitam e se anulam por vezes, reforçam-se em outros casos. Referindo-se ao sentido, desta vez restrito, da palavra “governo”, Foucault (1979) afirma que “as relações de poder foram governamentalizadas, isto é, elaboradas, racionalizadas e centralizadas sob a forma e sob a caução das instituições estatais”.  O ponto mais importante, para Foucault, em sua “analítica do poder” é, evidentemente, a articulação entre relações de poder e estratégias de afrontamento, pois toda relação de poder implica, potencialmente, uma estratégia de luta, sem que por isso elas se sobreponham, percam suas especificidades e, finalmente, confundam-se. Relações de poder e estratégias de luta constituem, uma para a outra, uma espécie de limite permanente, um ponto de reversão possível. Ao mesmo tempo, elas constituem uma fronteira: não é possível haver relação de poder sem pontos de insubmissão que, por definição, lhe escapam. Em suma, toda estratégia de afrontamento sonha em transformar-se em relação de poder; e toda relação de poder pende, na medida em que ela segue a sua própria linha de desenvolvimento e que evita as resistências formais, a tornar-se estratégia “vitoriosa”. Entre relação de poder e estratégia de luta, há, constitutivamente, apelo recíproco, encadeamento indefinido e trocas perpétuas.

Referências 
Michel Foucault (1984). O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.


Texto redigido para leitura na disciplina “Análise do Discurso”, ministrado pela Profa. Maria do Rosário Gregolin, UFAC, 2008.



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