segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política da identidade

“Michel Foucault, une interview: sexe, pouvoir et la politique de la identité”. (“Michel Foucault, an interview: sex, power and the politics of identity”; entrevista com B. Gallagher e A. Wilson, Toronto, junho de 1982; trad. F. Durant-Bogaert). The advocate, no 400, 7 de agosto de 1984, pp. 26-30 e 58. Esta entrevista estava destinada à revista canadense Body politic.


— Você sugere em seus livros que a liberação sexual não é tanto o colocar em jogo as verdades secretas sobre si mesmo ou sobre seu desejo quanto um elemento do processo de definição e construção do desejo. Quais são as implicações práticas desta distinção?

— O que eu gostaria de dizer é que, em minha opinião, o movimento homossexual tem mais necessidade hoje de uma arte de viver do que de uma ciência ou um conhecimento científico (ou pseudocientífico) do que é a sexualidade. A sexualidade faz parte de nossa conduta. Ela faz parte da liberdade em nosso usufruto deste mundo. A liberdade é algo que nós mesmos criamos — ela é nossa própria criação, ou melhor, ela não é a descoberta de um aspecto secreto de nosso desejo. Nós devemos compreender que, com nossos desejos, por meio deles, instauram-se novas formas de relações, novas formas de amor e novas formas de criação. O sexo não é uma fatalidade; ele é uma possibilidade de aceder a uma vida criativa.

— No fundo, é a conclusão à qual você chega quando diz que devemos experimentar tornar-nos gays e não nos contentar em reafirmar nossa identidade de homossexual.

— Sim, é isto. Nós não devemos descobrir que somos homossexuais.

— Nem descobrir o que isto queira dizer?

— Exatamente, nós devemos, antes, criar um modo de vida gay. Um tornar-se gay.

— E é algo sem limites?

— Sim, claramente. Quando examinamos as diferentes maneiras pelas quais as pessoas têm vivenciado sua liberdade sexual — a maneira que elas têm criado suas obras de arte, forçosamente constatamos que a sexualidade tal qual a conhecemos hoje torna-se uma das fontes mais produtivas de nossa sociedade e de nosso ser. Eu penso que deveríamos compreender a sexualidade num outro sentido: o mundo considera que a sexualidade constitui o segredo da vida cultural criadora; ela é mais um processo que se inscreve na necessidade, para nós hoje, de criar uma nova vida cultural, sob a condução de nossas escolhas sexuais.

— Na prática, uma das conseqüências dessa tentativa de colocar em jogo o segredo é que o movimento homossexual não foi mais longe do que a reivindicação de direitos civis ou humanos relativos à sexualidade. Isso quer dizer que a liberação sexual tem se limitado ao nível de uma exigência de tolerância sexual.

— Sim, mas é um aspecto que é preciso afirmar, de início, para um indivíduo ter a possibilidade — e o direito — de escolher a sua sexualidade. Os direitos do indivíduo no que diz respeito à sexualidade são importantes, e mais ainda os lugares onde não são respeitados. É preciso, neste momento, não considerar como resolvidos estes problemas. Desde o início dos anos sessenta, produziu-se um verdadeiro processo de liberação. Este processo foi muito benéfico no que diz respeito às mentalidades, ainda que a situação não esteja definitivamente estabilizada. Nós devemos ainda dar um passo adiante, penso eu. Eu acredito que um dos fatores de estabilização será a criação de novas formas de vida, de relações, de amizades nas sociedades, a arte, a cultura de novas formas que se instaurassem por meio de nossas escolhas sexuais, éticas e políticas. Devemos não somente nos defender, mas também nos afirmar, e nos afirmar não somente enquanto identidades, mas enquanto força criativa.

— Muitas das coisas que você diz lembram, por exemplo, as tentativas do movimento feminista, que deseja criar sua própria linguagem e sua própria cultura.

 — Sim, mas eu não estou seguro de que nós devamos criar nossa própria cultura. Nós devemos criar uma cultura. Devemos realizar criações culturais. Mas aí, devemos nos embater com o problema da identidade. Desconheço o que faríamos para produzir essas criações e desconheço quais formas tomam essas criações. Por exemplo, eu não estou de todo certo de que a melhor forma de criação literária que possa atingir aos homossexuais sejam os romances homossexuais.

— De fato, nós mesmos não concordaríamos em dizer isso. Seria partir de um essencialismo que nós devemos precisamente evitar.

— É verdade. O que se entende, por exemplo, por “pintura gay”? E, entretanto, eu estou certo que a partir de nossas escolhas sexuais, a partir de nossas escolhas éticas podemos criar algo que tenha uma certa relação com a homossexualidade. Mas esta coisa não deve ser uma tradução da homossexualidade no domínio da música, da pintura — o que sei eu, novamente? — não penso que isso seja possível.

— Como você vê a extraordinária proliferação, depois dos dez ou quinze últimos anos, das práticas homossexuais masculinas, a sensualização, se você prefere, de certas partes até então negligenciadas do corpo e a expressão de novos desejos? Eu penso, é claro, nas características mais surpreendentes daquilo que chamamos filmes gueto-pornôs, os clubes de S/M [sadomasoquismo] ou de fistfucking. É isto uma simples extensão, em uma outra esfera, da proliferação geral dos discursos sexuais depois do séc. XIX, ou antes, tratam-se de desenvolvimentos de outro tipo, próprios do contexto histórico atual? 

— De fato, o que gostaríamos de falar aqui é precisamente, penso eu, das inovações que implicam essas práticas. Consideremos, por exemplo, a “sub-cultura S/M”, para retomar uma expressão cara à nossa amiga Gayle Rubin2. Eu não penso que o movimento das práticas sexuais tenha a ver com colocar em jogo a descoberta de tendências sado-masoquistas profundamente escondidas em nosso inconsciente. Eu penso que o S/M é mais que isso, é a criação real de novas possibilidades de prazer, que não se tinha imaginado anteriormente. A idéia de que o S/M é ligado com uma violência profunda e que essa prática é um meio de liberar essa violência, de dar vazão à agressão é uma idéia estúpida. Nós sabemos muito bem que essas pessoas não são agressivas entre elas; que elas inventam novas possibilidades de prazer utilizando certas partes estranhas do corpo — erotizando o corpo. Eu acredito que temos uma forma de criação, de depósito de criatividade, dos quais a principal característica é o que chamo de dessexualização do prazer. A idéia de que o prazer físico provém sempre do prazer sexual e a idéia de que o prazer sexual é a base de todos os prazeres possíveis, tem, penso eu, verdadeiramente algo de falso. O que essas práticas de S/M nos mostram é que nós podemos produzir prazer a partir dos objetos mais estranhos, utilizando certas partes estanhas do corpo, nas situações mais inabituais, etc.

Leia a entrevista completa, clique aqui.


Foucault, M. (2004). Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política da identidade. Entrevista com B. Gallagher e A. Wilson. Verve, 5, pp. 260-277. (Trabalho original publicado em 1984) em <http://www.nu-sol.org/verve/n5/verve5-2004.pdf>



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