Dos balanços e seus inumeráveis fios, uma história do Geada
Essa figura que nos persegue, como um fino e frágil
fio de Ariadne: andar suspenso no fio / que tece desenredos / onde o fim é
sempre recomeço / porque à minha volta /
ruge, ofegante, o labirinto[1].
Colocar-me em uma posterioridade e lançar retrospectivamente o olhar
sobre as aquisições do nosso Grupo: eis o que pensei quando escrevi dois textos
intitulados Dos balanços e seus inumeráveis fios, uma história do Geada (I
e II).
O primeiro, escrito em Dezembro
de 2000, tinha, na época, o objetivo de fazer um balanço das leituras realizadas pelo Geada entre 1998-2000,
derrubá-las das prateleiras[2],
para tentar encontrar, na desordem em que se apresentariam, um fio qualquer a
sustentar as tortuosidades a que os textos lidos nos levaram. Pensava que,
assim, poderia interpretar o processo que nos envolveu na constituição do
grupo, em seus encontros e desencontros.
O segundo texto, escrito no final
de 2002, procura perseguir novamente nossa rota de leituras, agora já em um
grupo até certo ponto consolidado.
Talvez o clima de balanço,
que sempre coincide com certos finais (de um período, de um milênio), com
certas partidas que exigem longos adeuses – ou com aquelas motivações secretas
às quais não podemos aceder sem nos quebrarmos em cacos – acabou imprimindo um
certo tom nostálgico aos textos (devo desculpar-me?) e, certamente, me turvou a
vista. Entretanto, quero correr o risco, colocá-los na REDE e deixar
que exibam sua imperfeição, que sejam lidos em sua parcialidade, em sua
transitoriedade, em sua transversalidade – como palimpsestos (verdadeiros
peixes vivos se debatendo em minha mão). Eis, pois, as prateleiras em
desordem, aquilo que foi, efetivamente, escrito em outro tempo e lugar e que eu
lanço na rede:
Dos balanços e seus inumeráveis
fios I: uma história do Geada (2000)
Leitura
feita por puro prazer, Ceci n´est pas une
pipe[3]
foi o texto inaugural do GEADA: com ele aprendemos a gostar de Foucault e de
Magritte. Não foi retomado, a não ser tangencialmente quando iniciamos a
discussão sobre a teoria da interpretação em Foucault, já no final do ano, na
leitura do Theatrum Philosophicum[4].
A leitura de Ceci... iniciou o
estranhamento diante da esfinge-Foucault. Mas ela não nos disse o clássico
“decifra-me ou te devoro”. Pelo contrário, já afirmava a impossibilidade de
decifração, pois o sentido sempre leva a
outro sentido e a interpretação é um
processo infinito (para nosso alívio e para nossa desgraça).
As
leituras e discussões do GEADA, durante 2000, centralizaram-se na busca de uma
teoria do discurso, de uma teoria da interpretação. Nosso foco central é
FOUCAULT, mas não o Foucault
(seria muita pretensão) e sim aquele Foucault que está implicitado na Análise do Discurso
derivada de Pêcheux. Penso que o nosso esforço foi o de ler esse Foucault
submerso na AD. Onde fomos buscá-lo: nas implicitações e silenciamentos de
PÊCHEUX. E, em ambos – Foucault e Pêcheux – a recusa ao “humanismo” de Bakhtin[5].
Por isso, a teoria do discurso e da interpretação que estamos procurando parece
situar-se nas confluências e divergências das propostas de
PÊCHEUX-FOUCAULT-BAKHTIN. E, para nós, assim mesmo: Foucault no centro, Pêcheux
à esquerda e Bakhtin à direita.
Tudo
girou em torno de Foucault na Arqueologia
do Saber – nossa leitura-mestre[6].
Uma
leitura colateral essencial foi “(Re)ler Michel Pêcheux hoje”[7],
texto em que Denise Maldidier apresenta a vida-e-obra de Pêcheux. Foi esse
texto que nos deu uma idéia da trajetória de Pêcheux, seus entrelaçamentos com
aquilo que acontecia no contexto francês do final dos anos 60[8],
o enredamento entre sua vida e sua obra, as fraturas do seu pensamento, o
inacabado da sua trágica desaparição (e fomos montando algumas peças e fiando
um tecido de alguém que ele deve ter sido[9]).
Por isso,
penso que foi importante termos lido o “Remontemo-nos de Foucault a Spinoza”,
texto de Pêcheux-anos 70[10],
que explicita sua recusa (um pouco teórica, um pouco ideológica) às propostas
da Arqueologia[11].
E termos lido “Lecture et mémoire: project de recherche”[12],
para encontrar Pêcheux aceitando explicitamente as teses da Arqueologia, no início dos anos 80 (e,
até, citando Bakhtin!). E, tudo foi buscado através (de través) de Foucault na Arqueologia
do Saber – nossa entreleitura-mestre.
Como
entreleitura-mestre, a Arqueologia do
Saber nos levou a várias direções: à ordem do discurso, ao conceito de
função-autoria, à concepção de descontinuidade da História[13]. A reflexão sobre a concepção de “História”,
motivo de grandes embates entre os marxistas - como Althusser e Pêcheux - e
Foucault (marxista ma non troppo...)
ainda está embrionária no GEADA. É um tema que precisamos verticalizar nas
discussões futuras[14].
Ligado a essa questão da “História”, o tema da “morte do Homem” – outro centro
de grandes polêmicas em torno de Foucault - também resta a ser aprofundado[15].
E,
óbvio, conceito central da Arqueologia,
transferido por Pêcheux para a AD, foi o de formação discursiva. Foi preciso
pensá-la em Foucault[16]
e em Pêcheux[17].
A distingui-los, toda uma série de conceitos de base marxista (“ideologia”,
“classe” etc.). A distingui-los, toda uma história da AD, de apropriações,
paráfrases, deslocamentos e, principalmente, vulgarizações, na medida em que o
conceito circula desenfreadamente numa vulgata
da AD francesa que é feita atualmente no Brasil[18].
Penso que essa discussão norteou a maioria de nossos encontros: procurando
reinserir o conceito de formação discursiva, tivemos de encarar os espectros (de Marx, de Saussure, de
Freud, de Lacan)[19]
como vestígios que se grudam na produção-e-circulação dos conceitos teóricos
postos em evidência por Foucault e Pêcheux.
Há, me parece, um aspecto que
ficou colateral em nossas leituras. Trata-se da reflexão sobre a literatura,
cuja discussão ensaiamos através do texto de Foucault “Linguagem e literatura”[20].
Certas idéias propostas nesse texto – às quais não retornamos – ficaram
fragmentariamente separadas do corpo que auscultávamos. Por exemplo, ficaram na
epiderme as afirmações foucaultianas de que a literatura é uma invenção recente, pois data do século XIX, momento em que ela toma consciência de si como transgressão da
essência pura e inacessível da literatura. Do mesmo modo, ficou por
analisar a afirmação de que a literatura não
é exatamente nem a linguagem, nem a obra; é, de certo modo, o vértice de um
triângulo por onde passa a relação da linguagem com a obra e da obra com a
linguagem. Penso que esses órgãos não decifrados podem ser re-visitados com
a leitura de As palavras e as Coisas.
Penso, também, que a
colateralidade da reflexão sobre a literatura é uma deriva da natureza do
grupo, isto é, das suas preocupações mais urgentes. Um forquilhamento? A
literatura nos assombrou o tempo todo, com seus mil demônios. Talvez não
tenhamos conseguido incorporá-la ou exorcizá-la. Afinal, não foi ela que esteve
nos assustando, na leitura do Theatrum Philosophicum[21]
de Foucault, em busca de uma teoria da interpretação em torno de Nietzsche,
Freud e Marx? Mais uma vez, o Theatrum
nos mostrou que havia chegado a hora de
nos defrontarmos com a leitura de As
palavras e as coisas[22].
Os
encontros – e desencontros - do GEADA (momentos em que à complexidade
somaram-se a raridade, a felicidade, a mais pura edificação do pensamento
científico) nos ensinaram, acima de tudo, uma atitude diante do saber (e do seu correlato, o poder): o profundo respeito pelas epistemes (sabendo-as provisórias), o
profundo respeito pela história do Homem (exatamente por sabermo-nos um acidente na trajetória do discurso).
Creio que
cada um de nós acrescentou muito à sua vida nos encontros do GEADA. Aumentaram
as dúvidas, porque não há uma verdade (só vontades
de verdade). Cresceu o medo, porque é mesmo arriscado entrar na ordem do discurso. Tornamo-nos, todos, foucault loveslavers, porque é
impossível não nos apaixonarmos por quem tomou justamente o escondido, o
oculto, o degredado, o excluído, o apartado, o lado sombrio e, ao mesmo tempo,
falou sempre do matinal, da aurora, das luzes (enlightment), da memória. Em alguns momentos, pensamos ter Foucault nos
estendido o fio de Ariadne? Na maior
parte do tempo, andamos suspensos no fio.
Sabemos,
lendo Foucault, que do outro lado do fio reencontraremos, sempre, o labirinto
que ruge, ofegante.
Voltando
ao início: o nome do grupo – GEADA – foi proposta da minha orientanda Regina
Baracuhy. Estávamos pensando em um nome para o grupo. Estava difícil encontrar
o nome próprio, a marca da constituição da autoria. Baracuhy teve um sonho e,
nele, o nome do grupo era GEADA.
Vera
coincidência, o GEADA nasceu de um sonho.
Maria do Rosario Gregolin
Araraquara, fevereiro de
2001
[1] Anotação
que eu fiz em uma página do meu exemplar do livro A Arqueologia do Saber
(Foucault).
[2] À moda
dos estabelecimentos comerciais – como meu pai fazia quando eu era criança?
Lembro-me que a sua loja de calçados era, literalmente, desconstruída durante o
feriado do final de ano: eu ficava olhando aquelas caixas coloridas, deslocadas
das prateleiras onde jaziam em uma ordem rigorosa durante o ano todo,
espalhadas pela loja... Derrubava-se a ordem implacável das prateleiras,
suspendendo, momentaneamente, a lógica que as regia. Essa cena da desordem
ficou fixada em minha memória, como um encrave. Já a ordem a que – logo depois
do balanço - as caixas teriam que se sujeitar, dela não me ficou qualquer
lembrança.
[3] Foucault, M. “Ceci n´est pas une
pipe”. Em: Cahiers du chemin,
n. 2, janeiro 1968 ( republicado pela Fata Morgana, com as cartas de Magritte a
Foucault).
[4]
Foucault, M. Theatrum Philosoficum. São
Paulo: Princípio, 1987.
[5] E penso
que Bakhtin é uma daquelas “urgências teóricas” , uma onipresença pela
ausência. Não é esse o conceito do homem moderno para Foucault? .
[6]
Foucault, M. A arqueologia do saber.
Trad. Luis Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986.
[7] Esse
texto é a apresentação do livro L´inquietude
du discours. Paris:
Ed. des Cendres, 1990. Nesse livro, D. Maldidier publica uma seleção de
textos de Michel Pêcheux. Em primeira pessoa, nessa introdução, Maldidier (que
viria a falecer tragicamente em 1992), participante do grupo de Pêcheux, vai
narrando o percurso de M.Pêcheux e fazendo considerações e avaliações. A
tradução desse texto foi feita por mim e deveria ser retomada e aperfeiçoada
(quando teremos tempo?).
[8] E,
claro, a consulta deliciosa aos dois volumes de Dosse, F. A História do Estruturalismo (1. O campo do signo; 2. O canto do
cisne. Campinas: Unicamp/Ensaio, 1993).
[9] Nem uma
fotografia: é um Pêcheux incorpóreo, ao contrário da super-corporalidade de
Foucault nas inúmeras poses que recolhemos.
[10] Em:
Maldidier, D. L´inquiétude du discours.
Paris: Cendres, 1990. Tradução minha.
[11] E,
junto, a leitura de D. Lecourt (A arqueologia e o saber. Em: Rouanet, S. e
outros. O homem e o discurso. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971). Essa crítica de Lecourt foi a fonte na qual
Pêcheux bebeu sua crítica ao “marxismo paralelo” de Foucault.
[12] Em:
Maldidier, D. L´inquiétude du discours.
Paris: Cendres, 1990. Trata-se de um projeto que foi recusado pelo CNRS e ficou
inédito até a coletânea de Maldidier. A tradução desse texto também é minha, e
está esperando refinamento.
[13] E,
então, a leitura de Foucault, M. A ordem
do discurso (São Paulo: Loyola, 1996); de Foucault, M. O que é um autor? (Porto: Vega Passagens, 1990), de Rouanet, S. e
Merquior. Entrevista com Michel Foucault (Em: O homem e o discurso. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971).
[14] Penso
que estão à nossa espera textos de De
Certeau, de Le Goff, de P. Nora, etc. Alguns leram o excelente texto de P.
Veyne, “Foucault revoluciona a História” (em: Como se escreve a História. Brasília: UNB, 1997). Há, além disso,
uma publicação sobre a “história do presente” ( Institut d´Histoire du Temps
Présent. Écrire l´histoire du temps
présent. Paris: CNRS Éditions, 1993) que vale a pena colocar em nossos
horizontes (assim mesmo, no plural, que é assim que nós os percebemos...).
[15] Lemos
Rouanet, P.S. A gramática do homicídio (Em: O
homem e o discurso), mas precisa ser retomada, reinserida nas reflexões
sobre a ordem do discurso e o conceito de função-autor. Isso será pensado, em
2001, em torno da leitura de Foucault, M. As
palavras e as coisas.
[16] “No
caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante
sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de
enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma
regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações),
diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições e
conseqüências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão, tais
como ‘ciência’, ou ‘ideologia’, ou ‘teoria’, ou ‘domínio de objetividade’.”
(Foucault, M. A Arqueologia do Saber.
Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986, p. 43).
[17]
“Chamaremos, então, formação discursiva
aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada
numa dada conjuntura, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode e se deve ser dito
(articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma
exposição, de um programa, etc.).” Em: Haroche C., Henry, P & Pêcheux, M.
La sémantique et la coupure saussurienne: langue, langage, discours. Em: Langages, 24, 1971, p. 93-106.
[18] E essa
“história da AD francesa no Brasil” freqüentou muito as nossas discussões, foi
muito produtiva para pensarmos na fragmentação, nos equívocos atuais. Quando nos
referimos a uma vulgata, pensamos
numa segunda ou terceira geração de “analistas do discurso” no Brasil,
determinados pela forma como a teoria derivada de Pêcheux vem circulando nos
meios universitários brasileiros, desde o início dos anos 80.
[19] Bem que
tentamos ler Lacan (“O estádio do espelho como formador da função do Eu”. Em:
Zizek, S. Um mapa da ideologia. Rio
de Janeiro: Contraponto, 1996), mas ainda não era a hora de enfrentar esse
enigma espectral. Chegamos à conclusão de que, descontando-se aquilo que é pura
resistência teórico-ideológica, Lacan é indecifrável para nós, pobres seres
alter-ego-ideologizados assombrados pelos vários fantasmas de Marx (seus
seguidores, seus simpatizantes, seus detratores).
[20] Foucault, M.
Linguagem e literatura. Em: MACHADO, R. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
O texto, inédito, é uma conferência proferida
por Foucault em Bruxelas, em março de 1964.
[22] “Que
estranha maneira é essa, de ler Foucault, todo o tempo sinalizando para uma
leitura, transgredindo a cronologia estabelecida por Foucault-ele-mesmo?” - o
profeta das descontinuidades nos aterroriza e nos provoca, com sua risada cristalina.