Michel Foucault: o discurso nas tramas da história
Maria do Rosario Valencise Gregolin
Seus
furores secretos, suas grandes agitações febris,
Assim
como suas síncopes, é o próprio corpo do devir.
(Michel Foucault,
1971)
Os começos são sempre solenes. Com este enunciado Michel Foucault iniciou sua aula
inaugural no Collège de France, em
dezembro de 1970, em uma fala que, publicada posteriormente como livro (A
Ordem do Discurso) marcaria, ao mesmo tempo, suas conclusões provisórias
sobre as relações entre o discurso e os saberes e a sua passagem para a
reflexão sobre as articulações entre o discurso e os poderes. A ordem do discurso exibe um desses
limiares no interior dos quais precisa ser captada a presença de Foucault,
precisa ser lida a sua reflexão. Para ele, que sempre buscou os começos
relativos – porque nunca se iludiu com o mito das inaugurações, das
origens, das invenções absolutas – o discurso científico é, inexoravelmente, um
lugar onde se entrecruzam filiações a memórias e retomadas que sempre deslocam
sentidos.
Meu objetivo, neste texto, é indicar alguns momentos,
nos estudos de Foucault, em que ele pensou sobre as articulações entre o
discurso e a História e, portanto, elaborou conceitos e indicou direções para
uma teoria e análise do discurso. Sabemos que não foi seu objetivo imediato construir
uma teoria do discurso – suas temáticas sempre foram mais amplas e envolveram
as relações entre os saberes e os poderes na história da sociedade ocidental.
Por estar inserido em vastas problemáticas, o pensamento foucaultiano abriu-se
em várias direções: buscou compreender a transformação histórica dos saberes
que possibilitaram o surgimento das “ciências humanas” (o homem enquanto
sujeito e objeto do saber) na sua fase chamada de “arqueológica”; tentou
compreender as articulações entre os saberes e os poderes, na fase denominada
de “genealógica”; investigou a construção histórica das subjetividades, em uma “ética
e estética da existência”. Essas temáticas estão, sempre, articuladas a uma
reflexão sobre os discursos – pressupondo que as coisas não preexistem às
práticas discursivas, Foucault entende que estas constituem e determinam os
objetos. É, pois, a partir da reflexão sobre as transformações históricas do
fazer e do dizer na sociedade ocidental - práticas discursivas que provocam
fraturas, brechas e rearranjos nas configurações do saber-poder - que se edificam as suas problematizações.
Procuro, neste breve ensaio, delinear um caminho de
acesso ao pensamento de Michel Foucault, focalizando suas reflexões acerca do discurso
e da História. É, portanto, uma das muitas leituras possíveis de um
pensador cuja fecundidade se presta a várias interpretações. É uma leitura
feita por um pesquisador do campo das Letras, que busca o que Foucault pensou,
nos seus ditos e escritos, sobre o discurso, a História e a linguagem. Trata-se
de uma abordagem parcial, que se apresenta como um trajeto possível de acesso
ao universo foucaultiano. Essa advertência é um cuidado necessário quando se
trata de Foucault, principalmente porque, aqui, tomo como central um certo
momento de sua trajetória – cujas fronteiras abrangem sua produção
“arqueológica”[2] – sem
esquecer, entretanto, os desenvolvimentos impressos a esses conceitos em
momentos posteriores da sua obra.
“Obra”... Essa é uma das unidades que Foucault propõe
que deixemos em suspenso, em A Arqueologia do Saber (1969), porque ela garante a
continuidade, porque é um dos últimos bastiões que salvaguardam a autonomia
do sujeito... Procuro pensar a “obra” de Foucault, aqui, a partir daquela
categoria que ele propôs, a de efeito-autoria, nó que atribui coerência
à dispersão. É essa descontinuidade que constitui regularidades que proponho
acompanhar, nesta leitura de Foucault. A compreensão da importância da obra
foucaultiana para as reflexões sobre o discurso exige um ir e vir porque seu
pensamento não é linear. Os germes dos seus conceitos estão espalhados pelos
seus textos e formam um conjunto que – visto na totalidade – constrói uma
organicidade e abre a possibilidade de que outros textos sejam produzidos a
partir dele. Nesse sentido, seus textos precisam ser lidos como discursos[3]. É
nesse solo de possibilidades de aparecimento de outros discursos que a minha
leitura acompanha Foucault. Acatando o conselho do próprio filósofo, pretendo buscar
o nexo das regularidades que regem sua dispersão (1986, p. 55).
Estamos aqui, portanto, em um terreno em que um certo
olhar acompanha um certo momento (arqueológico), com o objetivo de focalizar textos
da obra foucaultiana nos quais ele, mais fortemente, teorizou as questões
relacionadas ao discurso e à História. Por isso, terei como foco central, no
primeiro movimento deste texto, a exposição das idéias expressas por Foucault
(1967; 1969; 1970; 1971a; 1971b) e que fundam sua concepção de “história” a
partir do diálogo com Nietzsche e com as teses da “Nova História”. Em um
segundo movimento, A Arqueologia
do Saber (1969) guiará a exposição
de sua concepção sobre o discurso e suas relações com o sujeito e a História.
Apesar de intervalar, ao acompanharmos esse percurso “arqueológico”, estaremos
próximos das fontes de um diálogo entre Foucault e a Análise do Discurso desenvolvida, na França, pelo grupo em torno de
Michel Pêcheux. Assim, acompanhando essas teorizações, procuro enxergar o lugar
de Foucault no campo da Análise do
Discurso: um lugar de polêmicas, enfrentamentos, diálogos, enfim, de
contribuição para o desenvolvimento de uma concepção de discurso fortemente
ancorada no coração da História[4].
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[1] GREGOLIN, M. R. Michel Foucault: o discurso nas tramas da História In: FERNANDES, C.A.; SANTOS, J.B.C. (org). Análise do Discurso. Unidade e Dispersão. Uberlândia : Entremeios, 2004, p. 19-42.
[2] Momento em que ele publicou os livros História da Loucura na idade clássica (1961); O Nascimento da Clínica (1962); As Palavras e as Coisas (1966); A Arqueologia do Saber (1969); A ordem do Discurso (1971) e ensaios desse período que foram reunidos em seus Ditos & Escritos.
[3] Pensando, justamente, no que escreveu Foucault no Prefácio à segunda edição de História da Loucura (1972, p. 10): Gostaria que um livro, (...), nada fosse além das frases de que é feito (...). Gostaria que esse objeto-acontecimento, quase imperceptível entre tantos outros, se recopiasse, se desdobrasse, desaparecesse enfim sem que aquele a quem aconteceu escrevê-lo pudesse alguma vez reivindicar o direito de ser seu senhor, de impor o que queria dizer, ou dizer o que o livro deveria ser. Em suma, gostaria que um livro não se atribuísse a si mesmo esse estatuto de texto ao qual a pedagogia ou a crítica saberão reduzi-lo, mas que tivesse a desenvoltura de apresentar-se como discurso: simultaneamente batalha e arma, estratégia e embate, luta e troféu ou ferida, conjunturas e vestígios, encontro irregular e cena repetível.
[4] Para uma discussão mais detalhada dos diálogos entre Foucault e Pêcheux na Análise do Discurso, veja-se Gregolin (2003).