quarta-feira, 8 de outubro de 2014

O que são as luzes? Entre a crítica do presente e os limites de nós mesmos



Juliane de Araujo GONZAGA*
 
“É preciso considerar a ontologia crítica de nós mesmos não certamente como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de saber que se acumula; é preciso concebê-la como uma atitude, um êthos, uma via filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente análise histórica dos limites que nos são colocados e prova de sua ultrapassagem possível”.

(FOUCAULT, M. O que são as Luzes?, 2000 [1984], p. 351).


            Quando, no século XVIII, a noção de “luzes” trouxe ao pensamento filosófico uma via para a autonomia e a liberdade do sujeito, não se previu a dimensão histórica que tal atitude evidenciaria no uso da crítica e da razão na Modernidade. A discussão levantada por Kant sobre a Aufklärung – no artigo “Was ist Aufklärung” publicado em jornal alemão no ano de 1784 – define-a como uma “saída”, uma “solução” que liberta os sujeitos de seu estado de “menoridade”. Por menoridade Kant compreende a vontade do indivíduo de aceitar e permanecer sob a autoridade de Outro dotado de razão. Tal perspectiva compreende que é a partir da razão que o Outro pode nos conduzir estabelecendo uma relação de heteronomia. Ao problematizar o princípio de Aufklärung, Kant traz à tona a razão como possibilidade de saída para o sujeito de uma relação de heteronomia para uma posição de autonomia na sociedade. Nesse sentido, é pelo uso da razão, ou seja, da atitude do sujeito de raciocinar sobre sua condição em relação aos outros que ele pode sair da menoridade e alcançar o estado de maioridade.
Para Foucault, a descrição que faz Kant da noção de Aufklärung não se constitui
adequadamente, uma vez que produz uma definição “universal” do uso da razão pelos sujeitos. E é justamente por constituir-se como modelo de raciocínio universal – capaz de garantir a autonomia e a liberdade a todos os sujeitos que façam uso legítimo da razão –, que essa perspectiva não pode auxiliar o trabalho do historiador na análise das transformações sociais, políticas e culturais ocorridas na Modernidade. Apesar disso, o texto de Kant, segundo Foucault, tem sua importância por demonstrar ligações entre a reflexão crítica e a reflexão histórica. O filósofo assinala que a Aufklärung, em Kant, demonstra o quanto cada sujeito é responsável, no momento presente, por seu próprio processo de “autonomização” pela razão. Assim, ao pensar as condições de seu presente – o período iluminista – Kant evidenciou a relação entre a reflexão filosófica e a constituição de saberes com o presente e as possibilidades para os sujeitos.
É evidente que o artigo de 1784 estabelece relações com as três Critiques de Kant, pois a Aufklärung surge como “o momento em que a humanidade fará o uso de sua própria razão, sem se submeter a nenhuma autoridade” (FOUCAULT, 2000, p. 340). Nesse momento a crítica é necessária, pois define as condições em que “o uso da
razão é legítimo para determinar o que se pode conhecer, o que é permitido fazer e o que é permitido esperar” (Ibid., p. 340). Desse modo, Foucault propõe a seguinte hipótese: a reflexão filosófica de Kant, sobre o uso crítico da razão pelos sujeitos, constrói os modos como a razão pode e deve ser mobilizada no momento presente.
Além disso, Foucault questiona: a emergência da Aufklärung enquanto tradição racionalista tem como conseqüência a Modernidade e seu desenvolvimento? Ou significa uma ruptura com os princípios fundamentais do século XVIII? Tendo em vista o artigo de Kant, Foucault compreende a relação entre a Aufklärung e a Modernidade muito mais como uma atitude do sujeito para com a atualidade do que uma época marcada por características peculiares. Dessa forma, compreender a atitude de modernidade requer a análise dos modos de pensar e sentir, de agir e conduzir-se do sujeito em relação à atualidade e às urgências históricas. A atitude de modernidade não implica reconhecer e aceitar algo de perpétuo na atualidade, mas sim “recuperar alguma coisa de eterno que não está além do instante presente, nem por trás dele, mas nele” (Ibid., p. 342). A atitude de modernidade compreende, então, a crítica da atualidade enquanto acontecimento singular e irrepetível.
Apesar disso, a atitude de modernidade não consiste somente na relação do sujeito com o presente, mas também em sua relação consigo, o que implica a tarefa de elaborar a si mesmo. Mais do que um acontecimento histórico complexo, a Aufklärung, segundo Foucault, indica um tipo de interrogação filosófica que “problematiza simultaneamente a relação com o presente, o modo de ser histórico e a constituição de si próprio como sujeito autônomo” (Ibid., p. 345). Mais adiante, o filósofo verifica ainda que a ligação existente entre a Aufklärung e o sujeito não corresponde a uma “fidelidade aos elementos de doutrina, mas, antes, a reativação permanente de uma atitude; ou seja, um ethos filosófico que seria possível caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico[1] (Ibid., p. 345).
Imagem: A boy admiring a statuette by candlelight, Joseph Wright, 1766.

Foucault não se posiciona a favor ou contra a Aufklärung; o que ele faz é interpretá-la como movimento histórico e filosófico que culminou num saber determinante e num ethos filosófico para o sujeito, que lhe indica como deve constituir-se para atingir autonomia e exercer a liberdade. Considerando o contexto histórico, a pertinência do pensamento iluminista e a posição ocupada pela reflexão kantiana nas ciências humanas no final do século XVIII, Foucault conclui que o conhecimento produzido pela Aufklärung instaurou relações de poder entre os sujeitos e atingiu o limiar de verdade. Nessas condições, a Aufklärung é interpretada por Foucault como acontecimento materializado na ciência, na política e na ética, que possibilita nos analisarmos como seres históricos e, ainda, a estabelecermos os limites de nós mesmos. O acontecimento da Aufklärung, conforme assinalado por Foucault, corresponde a uma movimentação de saberes nas ciências humanas que determina o que nos é permitido ser num presente específico, por meio do uso da razão.
Para finalizar, um breve retorno às perspectivas aqui traçadas. A atitude proposta pela Aufklärung, em Kant, evidencia uma crítica dos limites que o conhecimento deve renunciar e transpor para a constituição dos sujeitos. Já para Foucault, o acontecimento da Aufklärung é compreendido como positivo, na medida em que produz atitudes necessárias, singulares e contingentes aos sujeitos, resultantes das imposições arbitrárias das correntes filosóficas, das instituições de saber e dos posicionamentos políticos. O que pretende Foucault, ao retornar ao artigo de Kant, é demonstrar que as regras instauradas pelos usos da crítica e da razão na Modernidade contribuem para a legitimação de uma via filosófica para os sujeitos em suas relações com os outros, bem como para cada sujeito na elaboração de si mesmo. Em suma, a crítica de Foucault busca, a partir das condições históricas do presente e das relações de poder entre os sujeitos e o conhecimento, analisar as verdades construídas pela reflexão filosófica.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FOUCAULT, M. O que são as luzes? In: ______ . Ditos e escritos II – arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 335-351.




*  Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Lingüística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara – FCLAr/UNESP. Bolsista CAPES. Email para correspondência: gonzagajuliane@gmail.com.
[1] Grifo meu. 
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